Arte em tempos de cólera

O mundo vive momentos soturnos, em que se exaltam os maus feitos e se escondem os bons. Atolados no meio desse nevoeiro estamos nós, achando que normal a maldade, comum a corrida pelo sucesso, mesmo que, nessa maratona, não haja vencedores.
Perdemos muito de nosso tempo afundados em conquistar posses, em receber bons salários. Não há nada de errado nisso, a não ser quando essa busca incessante nos cega.
Deixamos a criatividade de lado, para seguir um padrão do que consideramos "bem sucedido". Afinal, a grama do vizinho é sempre mais verde que a nossa. Só não conseguimos enxergar que esse verde todo esconde fracassos pessoais severos, que lotam consultórios e aumentam o lucro da indústria farmacêutica. Ansiolíticos são mais consumidos (e desejados!) que chocolates! Que absurdo!!!
A gramática, em vez de ser ferramenta para a construção de um texto, vira um arreio. A criatividade, (ah, coitada!) é coisa de gente louca, insana (mas que não toma ansiolítico nem tem apego a psicólogos). A arte... coisa de gente à toa.
Se você conseguir observar a dinâmica dos fatos, independentemente de que época sejam, verá como tudo e todos repetem essa receita de sucesso em ter e derrota em ser.
Na infância, temos de colorir o sol de amarelo (no máximo, de laranja), o céu de azul e as folhas das árvores de verde; na adolescência, temos de mostrar interesse por meninos (se você for menina) e vice-versa; na fase adulta, temos de ter empregos (bem sucedidos de preferência), família e uma rede de amigos. Ah, também temos de demonstrar felicidade plena nas redes sociais.
Desde o primeiro "temos de" se inicia a falência do criativo. Aquilo que pensamos não podemos experimentar. Mas, num completo e patético paradoxo, dizem que temos de ser criativos, desde que (outra expressão perigosíssima "desde que") essa criatividade não choque nem se expanda para fora dos padrões. Conseguimos incluir numa mesma frase criatividade e padrão. Outro absurdo!!!
Creio que a única época em que essa amarra estrutura foi afastada  foi na Renascença. Ali, Michelangelo, Leonardo Da Vinci e tantos outros puderam tocar o "foda-se" para os padrões e criarem sem modelos pré-estabelecidos. Mas Deus, em sua infinita sabedoria, mandava ao mundo alguns libertários nas outras eras. Picasso, Florbela Espanca, João Gilberto, Einstein, Newton e inúmeros outros. A coragem destes é incomum, pois usaram o ridículo como aliado.
Hoje, entretanto, o destemor parece substantivo estático, sem correspondência verbal. Vivemos tempos obscuros em que a arte se curvou à padronização das mentes menores. Enjaulamos criatividade e arte, para agradar a quem sequer sabe a importância de um artista.
A arte em tempos de cólera não se atreve mais a ousar, a semear o torvelinho na mente humana, para tirá-la da inércia, para acender e ascender o senso crítico e afiar o olhar do expectador. Somos consumidores, usuários e tudo o que o significado dessas palavras encerra. Consumimos textos, novelas, programas que relativizam a maldade, que justificam o mau caratismo e exalta a ignorância. Não há liberdade. Aprisionamos nossas mentes. E, caso algum artista geste sua arte, em algum ato de amor com a criatividade liberta, tudo se fará para que o filho dessa sublimação cresça. Último absurdo (mas, infelizmente, só neste texto).


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