Como fazer uma política eugenista sem parecer eugenista – o CENSO/2022 ensina

A eugenia “foi” uma política governamental muito utilizada durante a II Guerra Mundial. Os nazistas pretendiam chegar à raça humana pura, a partir de diversas táticas, em especial o descarte daqueles considerados impuros. Apesar de a eugenia existir há muito tempo, pensa-se que ele se findou (ou diminuiu drasticamente) após a última Grande Guerra... mas será que foi mesmo.

Antigamente, as famílias que possuíam pessoas com deficiência ocultavam-nos  do restante da sociedade, principalmente se essa deficiência fosse intelectual. As famílias abastadas os escondiam em locais inóspitos ou em “hospitais” psiquiátricos; as mais simples, num quartinho isolado. O destino de todos era um só: uma vida horrível, sem qualquer perspectiva de melhora.

“Por que ‘principalmente se essa deficiência fosse intelectual?’”, você deve estar se perguntando. Quando vemos alguém com dificuldade motora ou outro tipo de deficiência visível, temos a tendência de sentir empatia por aquele indivíduo e nos preparamos para auxiliá-lo, pois podemos ver sua condição. Porém, quando uma pessoa parece ser “normal”, já imaginamos que aquela pessoa não possui qualquer traço que seja obstáculo a sua existência. 

A dificuldade em aceitar que as pessoas com deficiência intelectual são efetivamente pessoas com deficiência é tamanho que, para que haja um diagnóstico, pode-se levar anos. Antes de um profissional a tabular com o transtorno, o sujeito já recebeu diversas pechas como “preguiçoso”, “birrento”, “criança difícil” e tantas outras que alimentam a discriminação e o isolamento (inclusive familiar). É como se as pessoas com deficiência intelectual não correspondessem às nossas expectativas (“afinal elas parecem tão ‘normais’) e, mesmo com diagnóstico tardio, relutamos em aceitá-lo. Como esses indivíduos resistem em satisfazer nossos egos e se comportarem como pessoas “comuns”, nós as alijamos (Rosemary Kennedy, irmã de John Kennedy Jr., Nerissa e Katherine Bowes-Lion, primas de Elizabeth II, não me deixam mentir).

De poucos anos para cá, as pessoas com deficiência tiveram seus direitos reconhecidos no papel, como se pode ver na Convenção de Nova Iorque e, no nosso caso, na Lei Brasileira de Inclusão. Todavia, a teoria não acompanha a prática, pois são inócuas as políticas públicas voltadas para as pessoas com deficiência.

Aqui, falaremos especificamente dos autistas.

Os autistas se encaixam perfeitamente entre aquele indivíduos que parecem “normais”, mas teimam em se comportar como se não o fossem. Uma verdadeira afronta social. Os autistas leves (antes Síndrome de Asperger) são os piores, pois, podem até terem uma ou outra peculiaridade, mas têm de ser gênios! 

Deixando a ironia do parágrafo acima de lado, retomemos o texto.

Os autistas são pessoas que não possuem qualquer traço físico que lhes denuncie a deficiência. Como estão num espectro, há diversas formas de manifestação dessa condição. Uns são leves, outros mais moderados ou severos. Há a possibilidade de trânsito pelo espectro, moderados se tornarem leve, leves regredirem para moderado ou severo, mas uma coisa é certa, NINGUÉM SAI DO ESPECTRO.

Há pesquisas que apontam que há um autista em cada 64 nascimentos.

Mesmo diante desse número elevado, no Brasil praticamente inexistem políticas públicas para esse segmento. Quando existem são insuficientes para a quantidade de autistas daquela localidade.

E onde entra o CENSO/2022?

O CENSO é o instrumento utilizado para quantificar e qualificar a população brasileira. É com base nele que sabemos quantos somos; quantos são brancos, pretos, pardos, indígenas, etc.; quais as faixas etárias dominantes no país e em cada região e localidade, entre outros.

Esses números e qualidades são usadas para destinar parcela do orçamento público para, por exemplo, aumentar a quantidade de escolas em locais onde os indivíduos em idade escolar é maior; adotar políticas públicas de prevenção a doenças associadas à idade nas populações em que os idosos são maioria, e por aí vai. O resultado do CENSO é quem dá o norte para os investimentos governamentais.

Este ano, com a percepção dos autistas e de seus familiares sobre a insuficiência das políticas públicas, o TEA – Transtorno do Espectro Autista foi incluído no CENSO/2022. Com esses números poderíamos saber quantos autistas há em todo o país, em todas as regiões, estados e municípios. Saberíamos...

Com o início do recenseamento, os autistas e seus familiares tiveram a desagradável surpresa de que o resultado do CENSO/2022 está fadado à subnotificação dessa população. “Como?”, você, mais uma vez deve estar se perguntando. O CENSO/2022 possui 2 questionários, um básico (respondido por aproximadamente 80% dos entrevistados) e outro “por amostragem” (respondido por cerca de 20% dos entrevistados). Adivinhe somente em qual deles se pergunta sobre os autistas? Sim, isso mesmo, no “por amostragem”.

Resumindo, saberemos quantos somos, quantos somos de cada raça, idade, escolaridade, mas estaremos longe (muito longe) de sabermos quantos de nós somos autistas.

Tá, mas onde entra a eugenia nisso tudo? 

Antes de responder a sua pergunta, é bom destacar que o tratamento multidisciplinar (de diversas áreas: psicologia, fonoaudiologia, médico, terapia ocupacional, etc.) permite que o autista possa se desenvolver e, em muitos casos, ter uma vida independente.

Para que exista esse tratamento, é necessário investimento em políticas públicas, garantindo o pleno acesso dos autistas aos profissionais que realizarão esse tratamento de forma contínua e ininterrupta (lembre-se de que eles podem transitar pelo espectro, mas nunca saem dele). Quanto mais cedo se oferece o tratamento, maior são as chances de desenvolvimento pleno ou, pelo menos, de um desenvolvimento que permita minorar a dependência dos autistas.

Atualmente, os tratamentos públicos são escassíssimos e as filas de espera são de anos. Sem o tratamento, os autistas moderados e severos estão praticamente condenados a viverem em hospitais psiquiátricos quando seus tutores não puderem mais cuidar deles. Mas, até chegarem a esse estágio, muitos desses serão isolados dentro de suas casas. Uma vida de alijamento social.

“Ah, mas alijamento social não é a mesma coisa de eugenia”. Será? 

Já vimos que os autistas não possuem o tratamento adequado. Falemos agora de boa parte de seus tutores. Estes normalmente não trabalham, pois não têm quem cuide de seus tutelados, e sobrevivem com um benefício assistencial, o BPC/LOAS, de um salário mínimo. Boa parte desse numerário serve para comprar medicamento para seus tutelados, a maioria desses fármacos são destinados a “acalmar” os autistas, evitando-lhes as crises. Alimentação e outros itens igualmente importantes ficam em segundo plano.

Temos aí um modo eugênico já praticado há tempos contra as pessoas com deficiência: escondê-los da sociedade e, no fim de suas vidas, trancá-los em alguma instituição para que possam esperar a morte sem serem vistos pela sociedade.

“Tá, mas o que isso tem a ver com o CENSO/2022 ensinar sobre eugenia?” 

Simples, a partir de um resultado fictício, que subnotifica a quantidade e a localização dos autistas, esse instrumento será usado para justificar a falta de investimento em políticas públicas para os autistas. O prefeito, governador, presidente dirá “Ah, mas no Brasil não há tantos autistas, não há necessidade de se investir tanto em centros de reabilitação para eles”. Assim as filas de espera serão de décadas. Aos que tiverem a sorte de serem “sorteados” para receberem tratamento terão alta indevida (para poder a fila andar”. Teremos pouco (ou nenhum tratamento, para a maioria) e nunca haverá um tratamento ininterrupto (afinal, a fila tem que andar, para que o prefeito, governador, presidente possa se reeleger).

O CENSO/2022 soube como fazer eugenia sem parecer eugenista. Nem a mulher de César teria tamanho desplante.

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