Aparências... o efeito do brilho dos espíritos em aparências peculiares.


Não, ela não é bonita. É muito magra, com faces encovadas e olheiras imensas. Os cabelos já não são tão sedosos e as neves começam a se instalar entre um e outro fio de ébano. A bem da verdade, há mais neve que ébano. Os efeitos da gravidade se fazem visíveis...
Ela nunca foi bela. Na juventude, a magreza já era visível, as faces encovadas eram menos enrugadas. Os cabelos eram o que havia de melhor, negros, muito negros e extremamente sedosos.
Um tanto obtusa. Embora tivesse vocabulário elástico, não sabia combinar as palavras. Concordância, regência. Nada disso. Apenas vocabulário suficiente para escapar às gírias.
Dentição proeminente. Os lábios não eram suficientes para esconder o sorriso permanente. Involuntário e permanente. Sabia-se de seu desagrado pela ruga que se formava no meio da testa. Ruga traída pelo sorriso. Não a levavam a sério.
Era mulher de gênio difícil. Um tanto mimada, mas com a medida certa de realidade. Fosse bonita seria perfeita. Apresentaria aquele quê de sedução, de candura vinda do olhar, aliada ao acre da personalidade controversa. O olhar causava espanto. Muita olheira para pouco olhar. Os olhos, muito negros, disputavam com a escuridão das olheiras. No meio dessa amálgama, vinham-lhe os cabelos acobertando (ou tentando) o olhar esquisito. Era estranha, muito estranha. Um enigma.
Provocava paixões. Como??? Não eram as posses. Não era a aparência.
Extremamente generosa, fazia as pessoas se sentirem à vontade, como se fossem velhas conhecidas, amigas de infância. Qualquer interesse ou maledicência  ou interesse escuso se desvanecia naquela luz. Encantava a todos os que se detinham mais de 5 minutos em sua presença. A aparência um tanto estranha se tornava simpática, curiosa até. Pensando melhor, não era tão feia nem tão estranha.
Cada palavra dada entre aquele sorriso que insistia em permanecer... era tão peculiar. As rugas que se formavam na testa e, hoje, são tão permanentes quanto o sorriso . Não se sabe mais quando está zangada. Mas como alguém tão encantadora se zanga? Não, não há contrariedade. A bondade sempre presente. Aquela sensação de aconchego, como a evocar um lugar gostoso de um passado distante em que você se sentia pleno, invulnerável , feliz. Sim, ela trazia essa sensação. Talvez por isso fosse tão especial. Despertava na alma do outro o descanso necessário, quase entorpecente... a impressão de que se é verdadeiramente importante, preciso, amado.
O poder de tocar o inconsciente, o espírito. Trazer para perto de si, mesmo com todos os defeitos, a certeza de que aquele mundo distante, pretérito, mas perfeito, mais que perfeito, pudesse ser perene. A eternidade de um instante, presente naquela mulher exótica. O mistério se esclarecendo naquelas olheiras escuras, ladeadas pelo negro dos olhos e o balançar dos cabelos de ébano. Mistérios esclarecidos pelo brilho de íris tão escuras.
A certeza de que a alma de alguém tão distinta, única, ultrapassa a ilusão proposta pela aparência, para apresentar a verdade de um espírito capaz de conquistar o mundo, mas extremamente satisfeita com sua casa, mobília, marido, filhas, amigos e aparência. A satisfação de se saber estranha e, ao mesmo tempo, tão única. Um mistério tão claro quanto a neve que agora se amalgamava ao ébano.


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